Projetos Especiais

AO SERTANO (A obra de ELOMAR para violão erudito)

João Omar - Ao Sertano

João Omar - Ao Sertano

Estas peças características, telas de mortas paisagens talhadas em minha alma durante a grande travessia de minha infância pobre, porém cheia de luz até estes dias escuros que ora assisto, foram guardadas para serem executadas por ele, que trazendo nas veias o sangue dos cavaleiros progonais que habitavam estes ermos semidesérticos, veio também como arauto anunciador pela geração que (em parte) está de agora até o porvir, sedenta de valores de uma pátria sua e verdadeira.

Este álbum é o primeiro registro da obra completa para violão solo de Elomar Figueira Mello. São composições criadas na sua juventude e ao longo de sua vida, agora reunidas em um caderno com 13 peças.

 

O violão elomariano, dentre os compositores para este instrumento no Brasil, encontra lugar tão diferenciado quanto encontrou Villa-Lobos quando Andrés Segovia o considerou “a grande novidade para o violão no século XX”.

 

As composições aqui apresentadas têm estilística composicional que se diferencia pela forma ímpar como aborda elementos próprios da cultura musical do nordeste do Brasil, especialmente do sertão baiano, como também pelas construções temáticas, sem que as mesmas se deixem carcterizar simplesmente como música instrumental ou temas instrumentais. Tratam-se de peças originais que revelam um perfeito domínio na escrita para violão, com elaborada complexidade, beleza e virtuosismo. Com uma retórica que se articula com os modos de vida da localidade onde habita e transita – o sertão -, Elomar integra estes elemtnos à sua obra sem artifícios que utilizam material de culturas tradicionais, e as ideias musicais são de tal forma urdidas que dão vida própria e autencidade fluente ao seu discurso composicional. peças que formam a suite “Labuta sertaneza” aludem à jornada de trabalho do homem do campo. A peça “Trabalhadores na destoca” trata da preparação da terra para o plantio. Momentos de lamentação e resignação pela inclemência do clima do sertão são evocados em “Duvê esse chão quema meus pés”. Joana, vai chiquerá minhas cabra” simboliza o recolher do rebanho de cabras para chiqueiro ao final do dia. Outro conjunto de peças é o de “Três tiranas para el Queddah”, dividindo em “A seca”, “A Fome” e “A Retirada”, inspirado em conversas com Turíbio Santos quando, em visita à fazenda Casa dos Carneiros, o mesmo discorria sobre uma possível origem do nome “Guitarra” e as transformações que sofreu ao longo dos séculos.As composições “Batuque na Serra da Tromba” e “Batuque no Panela” reportam às proximidades de onde vive o compositor. São repletas de elementos rítmicos presentes na região, característica recorrente nas peças para violão de Elomar, inevitavelmente absorvendo e traduzindo impressões culturais que se tornam balizadoras da sua composição violonística, à sua maneira.

 

Ainda sob influência das conversas com Turíbio, nas a ideia de homenagear Villa-Lobos ao saber seu Sexto Prelúdio, perdido em viagens pela Europa ou pela Amazônia. Não se sabe ao certo. Destarte, Elomar visualiza a partitura do prelúdio afundando nas águas do rio Amazonas, e , valendo-se de uma faceta de seu estilo musical que permeia o impressionismo, recolhe um composição antiga inacabada e compõe “Prelúdio nº sexto”, com temperos estilísticos do violão villa-lobiano. “Lagoa da porta” é uma outra composição que também numa característica impressionista descreve uma lagoa seca enchendo gradativamente até transbordar, fechando o ciclo retornando ao período de estio.

 

Das peças, a “Clandú e cacorê” é a mais antiga, iniciada aos 17 anos e retomada na década de 1980. Expressa dois estados de espírito do tropeiro em sua labuta solitária. O sentimento de mau humor com tristeza, sem motivos aparentes, e um mais catárico no qual extravasa sua raiva interior. Esta peça lembra as valsas antigas, porém com um desenvolvimento composto posteriormente no qual se insere um ambiente mais sertanez.

 

Ainda no período de estudos em Salvados, Elomar teve contato com muitas partituras para violão, dentre elas “estudos” de vários autores. Na observância de que compor estudos para violão era uma prática muito comum, fez, com uma certa ironia aos inúmeros estudos compostos por muitos autores, um único estudo para violão intitulado “Estudo nº único”. A ultima peça deste disco, “São João xaxado”, evoca as festas de São João tradicionais do nordeste brasileiro, animadas pelo trio nordestino – sanfona, triângulo e zabumba. Na porção intermediária desta peça, o compositor refere-se ao cochilo, momento em que o sanfoneiro, sem a devida atenção dos convivas em abstecê0lo com comida e bebida, perde o interesse em tocar bonito, permanecendo apenas em poucos toques, até que lhe reanimem, suprindo-o com indispensável para a sua disposição e para que volte a tocas com vigor, animando a festa.

 

Do ponto de vista interpretativo, as peças para violão solo de Elomar Figueira Mello têm em muitas passagens uma retórica própria que se aproxima da oralidade no sertão: narrativas de estórias ou comentárias corriqueiros da vida destes habitantes do seminário, conservando dinâmicas que estão presentes nos falares e cantares desta região, um diálogo estrutural nas composições. Ja a partir dos títulos das peças entende-se que a maioria aflorou da imersão do compositor no casulo cultural sertanez, rico em formas e sonoridades, fonte de inspiração para que Elomar revelasse em música os encaminhamentos que sua criatividade e musicalidade singulares capturaram. A obra para violão solo de Elomar enriquece o repertório violonístico mundial e amplia com uma nova geografia o universo do violão brasileiro.

 

Quando a escola entrava em recesso, eu e meu irmão íamos com frequência à fazenda. Passávamos nossas férias na mercenária ou no campo, fazendo cercas, cuidando da criação, ora aventurando-se com pequenos facões, como se fôssemos habilidosos peões. Ir fazer cerca para mim, em especial, era uma aventura. Tinha que acordar bem cedo, fazer os preparativos, coar café, amolar as ferramentas na pedra com um pouco d'água, pegar chapéu, bota para se proteger das cobras para poder escolher o trecho a ser demarcado pelas balizas. Galhos, espinhos, veredas sombreadas, pequenos riachos de estação chuvosa. Enquanto eu imaginava aventuras nesses cantos, meu pai e os peões demarcavam o lugar e iniciavam o cercado. Em uma certa altura do trabalho, eu era designado a ir até a casa fazer café e trazer em uma lata de litro de óleo reaproveitada, ou num balde de alumínio pequeno, enrolado em um pano. Trazia também farinha de goma com requeijão cortado em pedaços... Desde o trabalho mais pesado, com o cavador ou lebanca, ao mais leve, nada escapou de minha lembrança.

 

No final das tardes, depois de ter chiqueirado as cabras, entrava na casa pela cozinha, e já ouvia alguns acordes que vinham do peitoril. Era meu pai compondo. Ouvia os pedaços sendo lapidados, as passagens musicais, os “trechos” sendo buscados como uma indaga de alguém que espera ouvir a resposta confessada pelas nuvens em brasa, ou no afago da noite que avança “com suas mãos serenas”. Assim como a cerca era feita, acho que tudo era uma só coisa para mim. E é deste modo que interpreto as músicas aqui reunidas, com minha memória de uma coisa só, como o despertar de impressões adormecidas.

Calundu e Cacoré

Batuque na Serra da Tromba

Dovê Esse Chão Quêma Meus Pé

São João Xaxado

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